Entidade alerta que apenas reconstruir o que já deu errado não garantirá o direito à vida digna para toda a população da região nos próximos anos
Os eventos climáticos extremos foram responsáveis diretos por mais de 250 mortes (75 em 2023 e 185 em 2024), entre 2023 e 2024, no Rio Grande do Sul. E se o estado quiser efetivamente garantir o direito à vida de toda sua população terá que investir mais em políticas climáticas de adaptação e mitigação, lutar ativamente contra as desigualdades, além de reparar os danos sofridos por grupos desproporcionalmente afetados – o que não é a realidade das atuais iniciativas de reconstrução.
A conclusão é da Anistia Internacional Brasil, que produz um relatório com dados inéditos sobre causas, consequências e responsabilidades na catástrofe climática do RS, evento que completa um ano esta semana. Com base em normas e convenções de direitos humanos nacionais e internacionais, o documento analisa informações obtidas pela entidade, um compilado de dados produzidos por instituições que têm monitorado os efeitos das enchentes e entrevistas com pessoas de comunidades diretamente atingidas pela tragédia.
Segundo a Anistia Internacional Brasil, a reação do poder público, nos diferentes níveis, tem sido insuficiente e a principal iniciativa estadual, o Plano Rio Grande, não tem mirado as causas profundas dos desastres, se limitando a reconstruir o que foi destruído sem enfrentar a crise climática com políticas públicas.
“O Plano Rio Grande tem representado uma oportunidade perdida e o risco de agravamento da situação de vulnerabilidade a eventos climáticos extremos no estado. Ele mantém estratégias que já foram infrutíferas no passado e possibilitaram a recorrência das tragédias de 2023 e 2024, com efeitos cada vez mais graves – principalmente na população mais afetada pelas desigualdades”, afirma a diretora executiva da Anistia Brasil, Jurema Werneck.
Já os serviços públicos, que teriam papel fundamental em proteger a população dos impactos desproporcionais, sofreram eles próprios danos que têm comprometido sua capacidade de atendimento.
SERVIÇOS PÚBLICOS AFETADOS
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Equipamentos educacionais (escolas municipais, escolas estaduais, instituições de ensino superior e escolas federais) – 782
Equipamentos de saúde (UBSs, Hospitais e UPAs) – 243
Instituições culturais (bibliotecas e museus) – 111
Estabelecimentos da rede de desenvolvimento social (CRAS, CREAS e outros centros) 69
Estabelecimentos de segurança (delegacias, estabelecimentos prisionais e pelotões ou batalhões) 42
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Fonte: GOVERNO DO ESTADO DO RS. Situação dos equipamentos públicos – Mapa Único Rs. Disponível em: Link
Após pesquisa de campo, a Anistia Internacional Brasil constatou que os auxílios de moradia, o aluguel popular e outras políticas de assistência estão nitidamente aquém das necessidades da população. O direito à moradia digna tem esbarrado em primeiro lugar na ineficiência do processo de cadastro para o Auxílio Reconstrução. Além disso, quem conseguiu um auxílio, considera os valores abaixo de suas necessidades, inclusive diante do aumento dos valores dos aluguéis em “áreas secas” das cidades inundadas.
O governo federal planejou comprar ou construir até 22 mil imóveis, mas até o final de janeiro, apenas 5.600 contratos foram assinados, e apenas 448 obras começaram efetivamente. O governo estadual prometeu construir até 2.500 casas, mas entregou apenas 332 moradias temporárias até o momento.
A falta de infraestrutura para a construção de novas moradias também precisa ser superada, pois muitas áreas afetadas carecem de terrenos adequados para casas definitivas. De modo temporário, casas-contêineres foram disponibilizadas pelo governo estadual. Contudo, a Anistia verificou in loco a inviabilidade da solução, visto que tais moradias chegam até mesmo a potencializar violações a grupos já vulnerabilizados. A situação é de insalubridade: ausência de espaço mínimo para convívio de uma família completa, temperaturas altíssimas sentidas no interior dos contêineres e abastecimentos irregulares de água, esgoto e energia elétrica.
De um modo geral, o panorama de utilização orçamentária demonstra prioridades totalmente descompassadas em relação à demanda efetiva por direitos humanos da população. Sobre o total já distribuído em políticas, o levantamento do GOV RS apontou, no balanço de um ano, que a utilização do Fundo Financeiro do Plano Rio Grande (FUNRIGS) foi de 8,5 bilhões alocados, sendo 3,7 bilhões empenhados e 1,7 bilhões liquidados.
Do montante, R$288 milhões investidos em programas sociais de assistência financeira; R$346 milhões em programas de apoio empresarial/comercial; 518 milhões em políticas habitacionais; R$1,73 bilhões em reconstrução de vias e rodovias; R$1,3 bilhões em dragagem e desassoreamento de rios; R$328 milhões repassados aos fundos da municipais da Defesa Civil; R$14 milhões para reestruturação da defesa civil estadual (compra de materiais); e R$930 milhões as forças de segurança (brigada militar, polícia civil e corpo de bombeiros militar). Enquanto isso, as principais políticas de mitigação, prevenção e monitoramento do clima ainda não possuem recursos específicos ou cronograma de implementação.
Desigualdades determinaram grupos mais afetados
A Anistia Internacional Brasil aponta ainda a desatenção das políticas públicas em todos os níveis para aqueles grupos que mais sofreram com os eventos extremos do clima no RS, nos dois últimos anos, como a população negra, indígena, os idosos, refugiados e outros.
Entre os dados estão mapas que comparam áreas alagadas da região metropolitana de Porto Alegre, com o perfil de renda e raça de suas populações, revelando que as regiões mais afetadas são aquelas com alta concentração de pessoas negras, como os bairros Humaitá e Rubem Berta em Porto Alegre, Mathias Velho em Canoas, Santo Afonso em Novo Hamburgo e Santos Dumont em São Leopoldo. Em 2022, as taxas de pobreza entre as comunidades pretas e pardas eram o dobro das taxas das populações brancas, atingindo 40% em comparação com 21%.
Uma pesquisa do Datafolha aponta que 47% das famílias que ganham até 2 saláriosmínimos relata ter perdido a casa, móveis ou itens pessoais. Entre as que ganham de 5 a 10 salários, somente 13% aponta algum tipo de prejuízo. Além disso, pretos e pardos formam maioria daqueles que relatam danos diretos (com 52% e 40% respectivamente), enquanto na população branca são 26% que relatam afetações.
Todas as comunidades quilombolas do RS tiveram algum tipo de impacto. Dessas, 155 (das 203 existentes de acordo com o Censo IBGE) estão em cidades que decretaram calamidade ou emergência. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) aponta que 145 comunidades tiveram danos diretos – totalizando 17.552 atingidos.
Já o governo do Estado menciona 300 famílias quilombolas desalojadas e outras 342 com danos diversos em suas residências e propriedades. Todas elas relatam danos em suas plantações de subsistência/comércio. Seus moradores relataram à equipe da Anistia a ausência de políticas e a escassez de iniciativas do poder público em termos de prevenção e mitigação, antes e durante a inundação.
Povos de Terreiro também estão entre os grupos mais severamente atingidos. O Ministério da Igualdade Racial aponta que o Rio Grande do Sul possui cerca de 1,3 mil casas de religiões de matriz africana, das quais aproximadamente 650 sofreram perdas totais, de acordo com o Conselho dos Povos de Terreiro do Rio Grande do Sul (CPTERGS).
No Rio Grande do Sul existem quatro povos indígenas oficialmente reconhecidos: Charrua, Guarani, Kaingang e Xokleng, totalizando uma população de 36 mil. Os números levantados pós cheias indicam que 70% dos territórios indígenas no RS foram atingidos, com mais de 80 comunidades afetadas (cerca de 8 mil famílias), somando pelo menos 30 mil pessoas afetadas.
Indígenas também relataram à equipe da Anistia Internacional Brasil que a retomada dos territórios pós inundações gerou novos conflitos fundiários e dificuldades diretas de restruturação. Os auxílios também foram um grande problema, já que como boa parte das áreas ocupadas ainda não foi demarcada – os indígenas vivem em acampamentos, com estrutura precária e sem acesso regular a serviços.
O RS possui a maior proporção de idosos no Brasil, com cerca de 20% de sua população acima de 60 anos. Esses idosos enfrentaram desafios específicos, como problemas de mobilidade, doenças crônicas e costumam apresentar uma tendência a resistir à evacuação em emergências, como foi relatado à equipe da Anistia Internacional Brasil durante as oitivas comunitárias. Dados da Defesa Civil dão conta de que os idosos foram a maioria das vítimas fatais das enchentes, constituindo cerca de 51,3% do número total. Além disso, estima-se que pelo menos 202,5 mil idosos foram afetados.
Quanto aos migrantes e refugiados, mais de 43 mil sofreram as consequências das chuvas (67% eram venezuelanas, 28% haitianas e 3% cubanas, segundo levantamento da ACNUR). Essas pessoas, que já enfrentaram desafios significativos para se estabelecerem no Brasil, perderam casas, pertences e documentos, além de terem suas atividades de geração de renda destruídas pelas águas.
A Anistia ressalta que o evento climático extremo que atingiu o Rio Grande do Sul no ano de 2024 se soma a políticas que não enfrentaram as desigualdades, expondo os grupos citados a consequências mais danosas e destrutivas antes e depois das enchentes.
A entidade afirma que as falhas do Estado em suas diferentes esferas têm evidenciado a necessidade de uma abordagem mais proativa e eficaz na gestão de desastres naturais. A Anistia lembra que a responsabilidade estatal deve ser assumida de forma mais ampla, considerando a prevenção, a mitigação e a reconstrução sustentável, além de garantir a transparência e a participação das comunidades afetadas no processo de tomada de decisões. A versão completa do relatório será lançada no fim de maio de 2025.